O artigo que se segue, é um contributo dado por José Manuel Jara - Médico Psiquiatra, a uma solicitação da Inter-Reformados para a reflexão sobre a actual mediatização da Guerra e os seus efeitos na saúde mental da população.
"O espetáculo da guerra e a saúde mental".
Sabe-se que as guerras são tragédias coletivas, independentemente do lado em que cada uma se posicione. A guerra que agora decorre na Ucrânia, país da Europa, relativamente próximo de Portugal, que desde há bastantes anos acolheu e acolhe emigrantes ucranianos.
A ofensiva militar da Rússia no território da Ucrânia, desencadeada em fins de fevereiro, desperta compreensivelmente uma preocupação coletiva, sobre a guerra e os seus dramas e horrores, sobre o sofrimento da população e sobre as consequências que pode vir a ter em Portugal e no mundo inteiro.
Se bem que esta guerra tenha tido antecedentes no golpe de Estado que ocorreu na Ucrânia há exatamente oito anos, e na guerra civil na fronteira Leste do país, zona conhecida como Donbass, que se arrastou até hoje, não se previa uma invasão da Rússia, com o alcance da que agora presenciamos.
Não é a primeira vez que é dado aos portugueses ver, presenciar e sentir as ocorrências da guerra. Na segunda metade do século XX, na década que antecede o 25 de Abril, os agora mais idosos viveram os dramas da guerra colonial, cujo desfecho se situa na Revolução democrática que pôs termo ao regime fascista. Nesse tempo as notícias da guerra eram escassas, personalizadas, não sendo visionadas e poucas vezes relatadas em direto para a população portuguesa. A experiência direta da guerra foi sentida nas populações das colónias, em zonas de combate, e diretamente pelos militares portugueses envolvidos nas guerras e as respetivas famílias. Não havia ainda a televisão. Os filmes sobre as guerras coloniais foram realizados já depois do seu termo. Hoje ainda, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) congrega e apoia sobreviventes, traumatizados física e mentalmente pela guerra.
A guerra na Ucrânia tem sido intensamente relatada, mostrada, visionada, comentada, nomeadamente pelos canais de televisão portuguesa e europeus, ocupando grande parte dos noticiários e debates.
E cumpre aqui dizer, desde já, que o modo de representar os acontecimentos da guerra é muito diferente do que foi apresentado em outras guerras, nas duas últimas décadas, como a do Iraque, da Síria, da Jugoslávia, da Líbia e do Afeganistão, guerras igualmente trágicas, com o cortejo de desgraças para os povos envolvidos. As narrativas podem ser, muitas vezes, intervenções no que se chama guerra informativa, melhor dito, de propaganda, baseada no lado político que os media e os governos decidem apoiar, por razões que não interessa aqui detalhar.
A guerra na Ucrânia é sentida como próxima, tanto no plano geográfico, como social e cultural. E o relato intensificado e permanente sobre os acontecimentos, os intervenientes, as armas, as destruições, as vítimas e fugitivos, inunda os canais de televisão a horas nobres e numa redundância programada. Compreende-se a importância de noticiar factos de grande significado para o mundo. No entanto, a repetição persistente já não corresponde a informação objetiva e realista, mas o que, sem exagero, se pode apelidar de formatação do cérebro e da mente do espectador pelos canais de televisão.
A sociedade em que vivemos é uma sociedade de espetáculo, sociedade de écran, tanto na televisão, como em redes sociais. Sabe-se que muitos jovens fazem “jogos de guerra”, como entretém e até como vício. Estas experiências podem levar a uma habituação à agressividade e à violência. Muita da ficção acessível em canais de televisão, é de guerras, de violência e de crimes, invadindo a mente de muitos e gerando gostos pelo horrível. Mas por muito realista que a ficção pareça, é ficção, é tida como fantasia. Depois de terminada a sessão, acabou. Fica na memória como algo que não aconteceu de facto, por muito verosímil que pareça.
As notícias e narrativas, em tempo real, da guerra que prossegue, tem um impacto maior, com repercussão na mente e nas emoções do espectador. O diário televisivo de guerra, repetido à exaustão, produz em muitas pessoas desarranjos psíquicos na esfera emocional, nos mais sensíveis, em crianças, em idosos, em doentes psíquicos, e mesmo em quem nunca vivenciou estados de perturbação psíquica. Poderá dizer-se que só vê quem quer, que basta desligar ou mudar de canal. É certo, mas a atitude passiva é muito comum. A pessoa quer ver para saber o que se passa, por curiosidade, por identificação afetiva com as vítimas da guerra, por uma espécie de solidariedade, por partilha consciente do que acontece no teatro da guerra.
Teatro de guerra, espetáculo de violência, recorte de notícias enviesadas segundo um prisma programado, notícias verdadeiras e notícias falsas, misturadas, alarme, terror, num filme real, cópia do real, que tem um grande impacto na mente humana. Poderá argumentar-se que a informação veiculada tem por missão consciencializar as pessoas, facilitar a solidariedade, mantê-las informadas. É verdade. Mas, a par disso, existe a dramatização geradora de aflições, de pesadelos, de insónias, de exacerbação da ansiedade latente; de estados de irritabilidade e também de agressividade. Poderá perguntar-se se não é esse o preço a pagar pela importância de dar a conhecer o que vai pelo mundo e acontece na guerra em curso. A consciência política e histórica não é um processo linear e maniqueísta. De uma maneira geral as narrativas informativas, faladas e filmadas, destinam-se, em quase todas as guerras, e esta não foge à regra, a criar uma opinião, em que o lastro emocional e afetivo por sugestão é mais importante do que a verdade dos factos.
As pessoas sensíveis começam a sofrer por ver as imagens repetidas, de aflições de velhos e crianças, de mães em pânico, a notícia de mortes, as imagens de destruições, as filas de fugitivos, consequências da guerra. A guerra passa-se, no essencial, nas batalhas de forças armadas, de instrumentos militares com tecnologias avançadas, que não se visionam quase nunca diretamente. Houve tempo em que era comum falar de ataques “cirúrgicos”, de efeitos “colaterais” (as repercussões na população) e até de “guerras humanitárias”. Foram tentativas de suavizar o impacto dos efeitos da guerra. Tempos houve em que o Ministério era chamado da “Guerra”, hoje designa-se da “Defesa”. Infelizmente, o mundo que modifica nomes não modifica factos. O recurso à guerra como meio de prosseguir objetivos políticos banaliza a violência.
No termo desta reflexão convém, agora, aconselhar as pessoas interessadas. Deve evitar-se uma exposição frequente, quotidiana, a imagens e notícias da guerra. As notícias da rádio e dos jornais são significativamente menos perturbadoras. A informação televisiva, com imagens traumatizantes, deve ser evitada ou restringida preventivamente. Esta indicação é de maior importância para as pessoas que sofrem perturbações emocionais e para as crianças.
José Manuel Jara
Médico Psiquiatra