Ao longo das últimas décadas, por via das políticas de sucessivos governos, assistimos a um processo de desvalorização do trabalho e dos trabalhadores, com a imposição e manutenção de um modelo de baixos salários e precariedade, cujos impactos se reflectem de forma significativa neste momento. A legislação laboral e o conjunto das normas gravosas que contém, que foram mantidas e agravadas, desequilibram ainda mais as relações de trabalho, seja no que diz respeito aos vínculos precários, à desregulação de horários e ao bloqueio generalizado da contratação colectiva com um impacto massivo na estagnação e desvalorização dos salários, carreiras e profissões.
Vivemos num país com uma estrutura produtiva debilitada, que sofre de forma acrescida os efeitos da pandemia, onde a política de direita levada a cabo atacou direitos laborais e fomentou a precariedade, destruiu e/ou debilitou serviços públicos e funções sociais do Estado essenciais ao desenvolvimento, desmantelou parte importante do aparelho produtivo nacional e entregou a agricultura e a pesca aos ditames da UE; alienou instrumentos de soberania fundamentais e deixou o país cada vez mais dependente, endividado e estagnado.
O nível das desigualdades e a profunda injustiça na distribuição da riqueza são gritantes.
Ficou à vista de todos: largos milhares de trabalhadores catapultados para o desemprego e a pobreza durante estes últimos dois anos, devido à precariedade dos vínculos e aos salários baixos que, ao serem cortados, levaram muitos à fome.
Os resultados de todo este processo, cujos problemas são estruturais e foram agravados pela situação actual, ficam claros nos números:
- 16,2% da população residente em Portugal é pobre (mesmo depois das transferências sociais – pensões e outras) ou seja, mais de 1,6 milhões de pessoas vivem com menos de 540 euros mensais. (Estes dados são de 2019 e não têm em conta a degradação das condições de vida dos trabalhadores e das suas famílias em 2020). Sem as transferências sociais o número de pobres dispara para 42,4%.
- 1 em cada 10 trabalhadores é pobre.
- 1 em cada 5 crianças é pobre.
- 4 em cada 10 desempregados são pobres.
- 3 em cada 20 reformados são pobres.
Serão estes os trabalhadores a que o patronato se refere quando diz que não há trabalhadores que estejam disponíveis para ocupar os postos de trabalho vagos nos diversos sectores?
Serão a estes trabalhadores que muitos se referem quando falam “daqueles que preferem viver das prestações sociais em vez do salário”?
São estas as prestações sociais que dizem ser altas e que precisam de ser diminuídas para levar os trabalhadores a entrar no mercado de trabalho?
Não.
Há milhares de trabalhadores e respectivas famílias que vivem na pobreza e exclusão social, privados do acesso a bens essenciais e a uma vida digna. A maioria com trabalho com vínculo precário e salários de miséria.
Há milhares de desempregados que não estão abrangidos por qualquer prestação social porque ou não se inscrevem nos centros de emprego por terem esgotado as suas prestações de desemprego, ou a elas não têm acesso por não terem efectuado descontos para a segurança social no período mínimo exigível ou que nem sequer efectuaram descontos devido à precariedade laboral.
Há outros tantos milhares que mesmo abrangidos por prestação sociais vivem na pobreza (até ao mês de Outubro do corrente ano, a média das prestações de desemprego não chegava ao valor do limiar da pobreza).
A pobreza de quem trabalha é consequência dos salários que se praticam nas empresas:
Em Portugal, actualmente, cerca de 900 mil trabalhadores recebem o Salário Mínimo Nacional – 665€, e levam para casa 592€ por mês. Com o aumento para 705€ em Janeiro de 2022, levarão para casa 627€.
Olhando para os Quadros de Pessoal mais recentes, verifica-se que em 2019, 19% (418 mil) dos trabalhadores recebia apenas mais 50 euros do que o SMN. Alargando o âmbito, verifica-se que 32% (756 mil) recebiam salários acima do SMN mas abaixo dos 750 euros [1].
No total, mais de metade dos trabalhadores auferia salários inferiores a 750 euros/mês).
Há actividades em que estas percentagens eram ainda superiores:
· Indústrias têxteis, do vestuário e calçado – 78,4%
· Actividades de apoio social – 73,3%
· Agricultura, produção animal e florestas – 71,8%
· Alojamento, restauração e similares – 71,6%
· Fabricação de mobiliário e de colchões – 70,9%
· Actividades administrativas e dos serviços de apoio – 68,6%
· Comércio a retalho – 67,3%
· Indústrias alimentares, das bebidas e tabaco – 63,5%
· Construção – 60,3%
· Captação, tratamento e distribuição de água; saneamento, gestão de resíduos e despoluição – 54,3%
Os dados da cobertura da contratação colectiva são bastante reveladores do bloqueio generalizado que existe, por via da utilização do mecanismo de chantagem da caducidade, mas se dúvidas houvesse, os dados dos salários praticados nos sectores acima descritos mostram a compactação salarial por via da estagnação e desvalorização salarial e a consequente degradação/destruição das carreiras e profissões. Independentemente dos anos de trabalho, experiência, formação, qualificação, procuram empurrar os trabalhadores para uma categoria única onde todos fazem tudo e ganham o mesmo, nivelando por baixo.
Há cada vez maior aproximação dos salários médios ao SMN, não porque o salário mínimo seja elevado (está muito longe do rendimento considerado adequado para uma vida digna – 1136 euros mensais) mas porque os salários médios são baixos.
Se este é o panorama entre os trabalhadores que estão empregados, para os que se encontram à procura do primeiro emprego ou estão desempregados, a situação é ainda mais difícil.
As ofertas de emprego disponíveis são, na generalidade, dirigidas a empregos precários e mal pagos. Isso mesmo se pode verificar a partir das ofertas registadas no IEFP que, embora não abrangendo todas as ofertas de emprego existentes, são um bom indicador para o que se passa a este nível. De facto, os salários a pagar nestas ofertas de emprego são, em média, muito baixos, próximos do salário mínimo nacional, não se valorizando as habilitações e qualificações dos trabalhadores nem a experiência de trabalho.
Os vínculos contratuais oferecidos são na sua maioria precários (isso acontecia com 55% das ofertas registadas em Outubro), o que depois tem consequências nas colocações realmente efectivadas. Assim, 65% das colocações efectuadas pelo IEFP em termos acumulados até Outubro foram a termo, não sendo crível que a maioria dos postos de trabalho preenchidos seja temporária.
Os salários das ofertas satisfeitas (colocações) são em geral baixos (731,50 euros em média no continente), sendo muito baixos mesmo para altas qualificações (os salários médios dos trabalhadores de vários grupos com altas qualificações não alcançam sequer os 1000 euros).
Em Portugal praticam-se dos salários mais baixos da União Europeia (UE). A média dos ganhos/hora em Paridades de Poder de Compra é das mais baixas da UE, de acordo com dados do Eurostat relativos a 2018. Salienta-se o facto de, desde 2006 até 2018, os salários dos países que têm uma média inferior à portuguesa terem aumentando entre 48% (Hungria) e os 117% (Bulgária), enquanto que em Portugal estagnaram (0,3% de aumento). O salário hora em Portugal que se fica pelos 71% da média da União Europeia em 2006, não chegava aos 56% em 2018.
Apesar da pequena recuperação de rendimentos a partir de 2016, com todas as limitações que temos vindo a apontar, fruto da alteração da correlação de forças na Assembleia da República, os níveis de desigualdade continuam elevadíssimos: os 20% mais ricos do país apoderam-se todos os anos de um rendimento equivalente (riqueza gerada) a 5 vezes o rendimento auferido pelo 20% mais pobres; os 10% mais ricos acumulam um rendimento equivalente a 8 vezes o rendimento que anualmente vai para os 10% mais pobres.
Emprego precário, salários de miséria, horários desregulados, desvalorização das qualificações e competências, desvalorização das carreiras e profissões – é isto que as empresas de uma forma geral oferecem a quem trabalha. A vida já provou que este não é o caminho. Não serve aos trabalhadores – aos que cá vivem e trabalham actualmente e a todos aqueles que vierem para Portugal à procura de uma vida melhor - e não serve ao País.
Para garantir um futuro para o país, de desenvolvimento, progresso e justiça social, para garantir um futuro onde os jovens e todos os trabalhadores queiram e possam ficar em Portugal, é indispensável garantir uma vida digna a quem cá vive e trabalha, com emprego seguro e com direitos, salários dignos, horários regulados e contratação colectiva com direitos negociada na perspectiva do progresso social.
DIF/CGTP-IN
Lisboa, 15.12.2021
[1] Nesse ano o salário mínimo nacional tinha o valor de 600 euros. Os dados referem-se a trabalhadores a tempo completo. Dados dos Quadros de Pessoal de 2019, GEP/MTSSS.