Num mundo empresarial rendido aos ditames da precariedade laboral, da desregulação do tempo de trabalho, da negação da humanidade que está em cada trabalhador, tratando como mero factor de produção, relegando para planos secundários, a sua vida, a sua família, o seu bem estar e a sua dignidade, eis que, ao mesmo tempo e de forma aparentemente paradoxal, vêm aumentar, por parte desse mesmo mundo empresarial, as vozes que declaram a importância do “factor humano” no combate aos riscos profissionais. O paradoxo esquizofrénico por parte daqueles que defendem, através da sua prática diária, a desumanização do trabalho, é apenas aparente.
Há uns anos, quando um sindicato da CGTP-IN queria eleger um representante dos trabalhadores para a SST, deparava-se inexoravelmente com uma chuva de obstáculos por parte das entidades patronais, que iam da suposta “inexistência de regulamentação eleitoral” à simples prepotência.
Estávamos num período anterior a 2003 e, nesse sentido, anterior à publicação da que viria a ser a primeira regulamentação da eleição do Representante dos Trabalhadores para a SST. Idiossincrasias do processo eleitoral à parte, que mascaram intenções políticas e sindicais inconfessáveis, a pesada, burocrática e complexa estrutura processual adoptada não impediram, a CGTP-IN e os seus sindicatos, de eleger mais de 85% dos Representantes para a SST existentes no país.
Até 2003, nem a as duas queixas à União Europeia por parte da CGTP-IN por incumprimento, por parte do estado Português, da Directiva 89/391/CEE, nem a alegada importância da participação dos trabalhadores no combate ao flagelo (passado e actual) da sinistralidade laboral, constituíam argumentos suficientes para demover as entidades patronais e suas aliadas, de colocarem obstáculos à simples, democrática e livre expressão da organização dos trabalhadores em matéria de SST.
Anos passados, uns obstáculos ultrapassados, outros entretanto levantados como parte de uma luta ancestral, eis que começamos a ouvir, aqui e ali, a importância do “factor humano” no combate aos riscos profissionais.
De repente, assistimos a uma profusão de entidades patronais, académicos reconhecidos, prestadores de serviço, gestores de recursos humanos, em uníssono e em voz bem alta declararem a importância do “factor humano” e da “cultura comportamental” na área da SST.
Mais de 20 anos depois da transposição da Directiva 89/391/CEE, esta multidão vem declarar como importante algo que a CGTP-IN sempre identificou como fundamental: a necessidade do envolvimento dos trabalhadores no combate aos riscos profissionais.
Mas... Será que assim é? Será que, por detrás de todas estas manifestações supostamente “humanizadoras” está, realmente, uma visão humanista e social do trabalho? Não nos parece!
Num mundo empresarial rendido aos ditames da precariedade laboral, da desregulação do tempo de trabalho, da negação da humanidade que está em cada trabalhador, tratando-o como mero factor de produção, relegando para planos secundários a sua vida, a sua família, o seu bem estar e a sua dignidade, eis que, ao mesmo tempo e de forma aparentemente paradoxal, vêm aumentar, por parte desse mesmo mundo empresarial, as vozes que declaram a importância do “factor humano” no combate aos riscos profissionais.
Das duas uma, ou seria um paradoxo quase esquizofrénico, aqueles que defendem, através da sua prática diária, a desumanização do trabalho, virem agora propor um retorno à centralidade que o ser humano deve ocupar na organização do trabalho, ou então, o que eles querem é mesmo outra coisa.
E de facto, esta súbita aclamação do “factor humano” mais não esconde do que a inconfessável ideia de que, no combate ao risco profissional, o mais importante é a atitude e o comportamento do trabalhador. E eis que, subsequentemente, proliferam empresas, profissionais e serviços, uns mais convictos, ingénuos ou iludidos, outros bem conscientes do seu papel “empresarial”, que oferecem serviços de aconselhamento, formação e treino a trabalhadores para que estes melhorem a sua “cultura comportamental” em matéria de segurança.
E o mais grave, e revelador da intenção responsabilizadora do “individuo” em detrimento da “organização”, é que esta actividade prolifera em empresas e organizações que são, não raras vezes, péssimos exemplos de organização humana do trabalho.
Muitas das empresas que embarcam e promovem estas teses, são as mesmas que recorrem ao trabalho temporário indiscriminado, são as mesmas que praticam horários de trabalho e condições de trabalho que já não deviam ser dos tempos actuais e, mais grave, fazem-no e conseguem fazê-lo, porque perseguem qualquer tentativa de organização colectiva dos trabalhadores, impedindo a eleição de representantes para a SST, oprimindo qualquer intenção de manifestação de uma liberdade, a liberdade de expressão, que, fora desses fóruns, os mesmos que a oprimem, aclamam como fundamental.
Estas práticas, intencionais e apenas aparentemente contraditórias, pululam por entre empresas bem conhecidas da nossa praça, que vão da distribuição à indústria, passando pelos transportes, restauração, etc.
Afirmar a importância do “factor humano” ao mesmo tempo que se afirma a sua supressão em função das necessidades financeiras da organização, mais não pode significar do que a pretensão de criar a ideia de que é no trabalhador, e no seu comportamento face ao risco, que se concentra a responsabilidade, quase exclusiva, do combate à sinistralidade laboral. O que não é, como se sabe, uma verdade em si mesma.
Reconheça-se, que o “factor humano” e o “factor comportamental” são peças importantes do “esquema preventivo”. Sem dúvida! Mas são importantes quando encaixadas numa organização coerente, que pratica a denominada “prevenção integrada” em todas as fases da gestão da organização.
Afirmar a importância do “factor humano” ou do “factor comportamental” em matéria de SST, é afirmar o primado da liberdade de participação dos trabalhadores em matéria de organização do trabalho, é respeitar toda e qualquer forma de organização ou manifestação de organização, seja qual a sua identidade política, ideológica ou social... No fundo, é integrar o ser humano na organização, promovendo a sua centralidade face a essa mesma organização. Nessa medida, o “factor humano”, sendo importante, é tão importante como uma organização apostar em equipamentos de trabalhos seguros, em regras e procedimentos coerentes, transparentes, compreensíveis e compreendidos e numa organização do trabalho que respeite a dignidade de cada um, inclusive dos seus direitos humanos.
No trabalho também se violam direitos humanos, entre muitos, o da dignidade da pessoa humana. É possível valorizar o “factor humano” na organização sem moldar essa mesma organização aos seres humanos que lá trabalham? Sim é! Mas apenas subvertendo o “factor humano”, nunca promovendo.
Em 47 anos de promoção da humanização do trabalho, depois de milhares de representantes dos trabalhadores eleitos, de cadernos reivindicativos propostos e condições de trabalho conquistadas pela luta, a CGTP-IN tem toda a moral para afirmar o primado do “factor humano” na organização da SST. Assim outros o tenham!
Por Hugo Dionísio
Departamento de SST da CGTP-IN