O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) será implementado num contexto marcado por opções políticas que perpetuam e não resolvem os desequilíbrios acumulados ao longo das últimas décadas, em que grassa a precariedade e os baixos salários, um perfil produtivo assente em actividades que incorporam baixo valor acrescentado, um muito baixo nível de investimento público ao longo da última década, a debilitação dos serviços públicos e das funções sociais do Estado e uma crescente dependência face ao exterior.
Com uma perda na criação de riqueza de 7,6% no último ano, o país debate-se com a necessidade de utilizar todos os meios e não desperdiçar nenhuma possibilidade para promover uma rápida recuperação económica, salvaguardar o emprego ameaçado, combater a precariedade e criar novos empregos com direitos, valorizar os salários e os rendimentos de quem trabalha ou trabalhou. Portugal precisa de uma política que coloque a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, do povo e do país à frente dos constrangimentos e da chantagem da UE, desde logo desenvolvendo de forma robusta uma política orçamental que se liberte da pressão constante para a contenção do défice e dos constrangimentos da dívida pública.
A ligação umbilical do PRR com o Semestre Europeu, submetido ao Pacto de Estabilidade e ao Euro, instrumentos que enquadram a política indutora dos desequilíbrios acumulados com que a economia e a sociedade portuguesa se debatem, hipoteca a necessária resposta aos problemas estruturais.
Desde logo pelas prioridades políticas resultantes das condicionalidades impostas pelo Regulamento do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, incluindo «marcos e metas», que a UE faz depender para desbloquear as tranches de cada «reforma» ou «investimento» e cuja definição o governo remete para posterior acordo técnico com a Comissão Europeia, mas sem a qual não é possível avaliar com maior propriedade o seu alcance e impacto.
O eventual impacto positivo de algumas medidas enunciadas para a concretização do Pacto Ecológico, particularmente em relação aos transportes, eficiência energética e recurso a energias renováveis é contrariado pela sua submissão aos interesses dos monopólios deste sector. São estas mesmas grandes empresas da energia que anunciam o encerramento de infra-estruturas de produção energética insubstituíveis a curto prazo, como a Refinaria da Galp, em Matosinhos, e a Central Termoeléctrica da EDP, em Sines, acompanhado do despedimento de centenas de trabalhadores, o que poderá conduzir à substituição de produção nacional por importações, aumentando a dependência energética do país, a insegurança do abastecimento, o aumento do seu custo para as famílias e o conjunto da economia, tudo isto com idêntico ou superior impacto ambiental e um elevado custo económico e social.
As prioridades definidas pelo PRR não contribuem para superar os problemas estruturais do país, acentuando um modelo económico que privilegia a produção para exportação e a continuação ou aumento do nível de importações, ou seja, que amarra o país a um sistema extensivo de produção, logística e transporte internacional, sustentado por um intenso consumo de petróleo e de materiais, responsável pela degradação ambiental e por expor os trabalhadores e o país à concorrência internacional baseada na diminuição de custos pela eliminação de direitos e diminuição de rendimentos do trabalho.
Por outro lado, a «transição digital», tal como é aqui colocada, não promove a necessária valorização do trabalho e dos trabalhadores, apontando antes para o financiamento público do capital, tendo em vista a substituição do trabalho por soluções técnicas que ameaçam o emprego, sobrecarregam os trabalhadores com novas e mais intensas tarefas e desregulam os seus horários. Os desenvolvimentos da ciência e da técnica devem ser colocados ao serviço do progresso e da justiça social. A sua evolução demonstra enormes potencialidades para se encontrarem soluções urgentes e imediatas para a manutenção e criação do emprego e a melhoria das retribuições dos trabalhadores, opções que o quadro para a «resiliência» não define nem concretiza.
A resposta aos problemas estruturais passa também pela necessária articulação e complementaridade do PRR com os restantes instrumentos que o Estado português tem ao seu dispor, desde logo o Orçamento do Estado, a Estratégia Portugal 2030 e ainda pelas mudanças necessárias no plano normativo, no quadro da afirmação e implementação de uma política soberana de desenvolvimento que promova uma ruptura com décadas de divergência e estagnação económica e que tenha no seu centro a valorização do trabalho e dos trabalhadores, o aumento do investimento público tendo em vista a dinamização da produção nacional e a valorização dos serviços públicos e das funções sociais do Estado.
Os recursos financeiros e humanos que a situação exige, não se podem limitar ao envelope global do PRR ou ao conjunto dos fundos da UE alocados a Portugal e às suas prioridades, nem muito menos ficar sujeitos a restrições na utilização de empréstimos, tendo como justificação as implicações no aumento da dívida.
A situação que a pandemia expôs, demonstra que é urgente outra política. As soluções não podem ser as mesmas que nos trouxeram à actual situação.
Para “recuperar Portugal, construindo o futuro”, exige-se a promoção do trabalho com direitos, o fim da praga da precariedade dos vínculos laborais, da desregulação dos horários de trabalho e dos baixos salários em que se alicerça um tecido económico em que o peso relativo da actividade produtiva é baixo, pouco diversificado e gerador de fraco valor. Exige-se o reforço da aposta na resposta pública às necessidades das populações e na promoção da coesão social e territorial, ao invés da visão assistencialista presente no PRR em várias áreas.
A mobilização das forças produtivas e o aproveitamento de todo o potencial existente no nosso país rumo a um novo modelo de desenvolvimento soberano, que liberte Portugal das amarras externamente impostas e promova a elevação das condições de trabalho e de vida, exige um verdadeiro plano de recuperação económica e social, com prioridades próprias, que eleja o aumento da produção nacional e a valorização do trabalho e dos trabalhadores como eixos fundamentais.
Apreciação sobre as componentes do PRR
A dimensão do trabalho e do emprego é tratada de forma muito insuficiente no PRR, apesar da concretização do mesmo depender dos trabalhadores. Centra-se na chamada Agenda de promoção do trabalho digno; em medidas de formação e qualificação, com grande enfoque nas TIC; na digitalização dos processos de trabalho, criando condições para a expansão do teletrabalho quer no sector público, quer no privado.
As medidas incluídas na “Agenda de promoção do trabalho digno” resumem-se a mais políticas activas de emprego - através de um novo apoio à contratação permanente de âmbito limitado e temporário, canalizando mais apoios públicos para as empresas - e a um aumento insuficiente do salário mínimo nacional até 2023, além de um enunciado sobre a importância da promoção da negociação colectiva, ao mesmo tempo que se mantêm em vigor as normas do Código de Trabalho que limitam esse e outros direitos dos trabalhadores e que têm precisamente como efeito o agravamento desses mesmos problemas, nomeadamente o regime da sobrevigência e caducidade das convenções colectivas, o período experimental de 180 dias para jovens e desempregados de longa duração e os vários mecanismos de desregulação dos horários de trabalho, entre outras.
Para a CGTP-IN, o PRR deve desenvolver-se num quadro de valorização do trabalho e dos trabalhadores, o que passa pela efectivação do direitos dos trabalhadores; pela revogação das normas gravosas do Código de Trabalho no que respeita à contratação colectiva, aos horários de trabalho e à precariedade do emprego, bem como às alterações às indeminizações por despedimento; pela valorização dos salários, o que implica o aumento geral dos salários e do SMN para 850 euros a curto prazo; pelo cumprimento e alargamento do direito à formação profissional e à sua valorização em termos salariais e das carreiras profissionais.
O combate à precariedade passa também pelo reforço da actuação e dos meios humanos e materiais da ACT para aumentar a fiscalização do cumprimento das normas laborais e essa deveria ser uma medida a financiar pelo PRR.
Em matéria de qualificações e competências, o investimento previsto enferma de dois problemas estruturais: a ausência de uma estratégia de desenvolvimento do país que transforme o perfil produtivo actual, na qual entronque o investimento em qualificações e competências que respondam a essa transformação; a orientação do investimento para a resposta a necessidades de curto e médios prazos, muito assentes numa lógica de mercado imediatista e com uma visão redutora e utilitarista do sistema de educação e formação que, mais não tem feito, do que usar este serviço público para reproduzir um modelo de baixos salários e baixas qualificações, com a consequente fuga de profissionais altamente qualificados para os países mais ricos.
A medida mais importante consiste na “modernização da oferta e dos estabelecimentos de ensino e da formação profissional”, a qual, quando desagregada, denota uma centralização da atenção na infra-estrutura ligada ao ensino profissional, bem como uma aposta no alargamento do que se denomina de “centros e pólos da rede de formação sectorial”. Tratando-se de um investimento avultado (710 M€), é fundamental para a CGTP-IN que o mesmo resulte num reforço efectivo do sistema público de ensino e formação profissional e não, como se antevê, num desvio de uma parte considerável destes fundos para instituições privadas, sejam no domínio do ensino profissional, seja no domínio da formação profissional. Grande parte da rede de ensino profissional assenta em escolas privadas do sector lucrativo pagas pelo erário público, tal como sucede com a formação sectorial, muita dela assente em centros de formação geridos por associações patronais que respondem, essencialmente, às suas necessidades de curto prazo.
Para a CGTP-IN é fundamental que o investimento seja canalizado para o reforço da rede pública de escolas profissionais e centros de formação, capacitando o Estado para um cumprimento cada vez mais efectivo do direito universal à educação e à formação profissional, nos mais diversos domínios e tornando o acesso possível a trabalhadores e jovens das regiões de baixa densidade.
Para que se cumpram as metas, ambiciosas, estabelecidas no PRR, é fundamental que o direito à formação profissional seja reforçado, nomeadamente no que concerne às condicionantes ligadas ao exercício do estatuto do trabalhador estudante, ao acesso à formação por parte de trabalhadores com vínculo precário, trabalhadores nocturnos e, tendo em consideração as características do tecido empresarial, os trabalhadores das micro e pequenas empresas. No entanto, a centralização do investimento previsto em centros sectoriais, a maioria dos quais geridos pelas maiores associações patronais, afunilará a oferta para os trabalhadores das grandes empresas, as quais, por sinal, são as que menos necessitam deste tipo de apoios.
Independentemente das tipologias de investimento previstas, a CGTP-IN considera que falta ao PRR: a conjugação das políticas de qualificações e competências com uma estratégia de desenvolvimento nacional mais vasta, mais apta a responder às reais necessidades nacionais e não às imposições da UE; uma aposta na remoção das barreiras legais, geográficas, socioeconómicas e sócio laborais que persistem e dificultam o acesso às soluções de qualificação por parte de largas camadas de trabalhadores; o incentivo ao investimento para o reforço das valências públicas no domínio da formação, do ensino profissional e do ensino superior; a obrigação de que os apoios à contratação promovam emprego de qualidade e com direitos e para o reforço das exigências e valências ligadas ao acompanhamento, monitorização e fiscalização das empresas que recorrem a esses apoios; a prioridade de acções que estejam integradas em projectos mais vastos de promoção da produção nacional e da alteração do perfil produtivo de baixos salários e baixas qualificações.
Estritamente na área da educação, em que manifestamente se secundariza o ensino cientifico-humanístico em relação ao ensino profissional, as medidas reduzem quase tudo à promoção da digitalização, através da aquisição de equipamentos e de melhoria de acesso à internet, com o objectivo de uma utilização integrada no ensino presencial, misto e à distância. Não descurando a importância de dotar as escolas de mais e melhores condições para a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem, existem outras necessidades urgentes a que o PRR não dá resposta, como as que dizem respeito ao reforço do pessoal docente e não docente, e respectivas condições de trabalho, aos apoios sócio-educativos, à qualidade das instalações e a outros equipamentos.
A CGTP-IN valoriza que a componente de saúde constitua uma das prioridades inscritas no PRR e que o investimento previsto coloque à cabeça os Cuidados de Saúde Primários (CSP). Mas existe uma desproporção entre os investimentos dirigidos à digitalização (345 M€) e o investimento previsto para o reforço dos CSP (463 M€), quando esta deveria ser a principal resposta estratégica na área de saúde. Esta distorção é causada pela subalternização das prioridades nacionais face às prioridades e aos constrangimentos europeus, como já se referiu.
É inegável a importância das reformas seleccionadas (CSP, saúde mental e gestão hospitalar), independentemente dos conteúdos concretos, mas o PRR deveria também sinalizar, como reforma essencial, o alargamento do SNS, incluindo na área da saúde oral, que está prevista, mas de modo muito insuficiente. Não obstante, em qualquer das reformas, não se aponta para o reforço e a valorização dos trabalhadores que aqui, como noutras componentes, são um factor decisivo.
A aposta nos CSP é fundamental, mesmo que seja há décadas reconhecida. Mas o PRR é curto em ambição, restando saber se as articulações e complementaridades referidas irão suprir o que está em falta. O problema do excessivo recurso a hospitais exige a capacitação da rede de CSP (rastreios, exames, MCDT, equipamentos, etc.). O PRR inclui estas medidas, mas é preciso ir mais longe, como, por exemplo, nos MCDT, cujo objectivo se limita aos de baixa complexidade.
Os serviços de saúde ocupacional nas unidades do SNS também não são referidos. Deviam sê-lo, haja ou não respostas a concretizar por via do PRR.
O PRR refere que a fragmentação dos cuidados prestados constitui um problema. A garantia de equipas de saúde familiar constitui um meio essencial para assegurar a continuidade na prestação de cuidados e para se passar para um paradigma de promoção da saúde e de prevenção da doença. Recorda-se, contudo, que milhares de utentes nem a médicos de família têm acesso (730 mil em 2019).
A componente dirigida às respostas sociais prioriza os equipamentos e respostas sociais e a inclusão de pessoas com deficiência. Trata-se de uma das áreas onde existe maior desproporção entre a necessidade de respostas, considerando a gravidade dos problemas existentes, e o investimento previsto (3,5% do total, incluindo os empréstimos). Acresce que as medidas previstas têm subjacente o reforço das respostas geridas pelo chamado sector social e até pelo sector privado, o mesmo acontecendo com os cuidados continuados e paliativos.
Mesmo retendo que existem outros instrumentos de financiamento, o PRR deveria sinalizar esta componente como prioritária. A CGTP-IN propõe que seja criada uma dotação própria para a criação de uma rede pública de equipamentos e serviços sociais. Face à falta de respostas nas áreas assinaladas pelo PRR (infância, pessoas idosas e pessoas com deficiência ou incapacidade), a criação de 28 mil lugares previstos é por demais insuficiente.
Uma das áreas onde as necessidades são mais claras é a dos equipamentos dirigidos às pessoas idosas, sobretudo nalgumas regiões do país, que a Covid-19 evidenciou estar especialmente vulnerável fora da rede pública. A situação de muitas famílias é dramática considerando os elevados custos que suportam com respostas privadas lucrativas a que muitas são forçadas a recorrer, devido à ausência de respostas públicas.
Na área do combate à pobreza impera uma visão assistencialista e que ignora a pobreza laboral e a dimensão do emprego e do desemprego, que apenas é referida a propósito das políticas de promoção da empregabilidade, normalmente medidas activas de emprego.
O PRR opta por colocar a justiça e o poder judicial ao nível de outras áreas da Administração Pública, reduzindo-o a uma lógica economicista presente na direcção dada às “reformas”, reduzindo o seu âmbito aos tribunais administrativos e fiscais – a que se juntarão, certamente, os tribunais ou juízos comerciais – a respeito das insolvências.
Negligenciam-se as pessoas e, em particular, os trabalhadores. São inexistentes as referências ao reforço do apoio judiciário, ou sobre o alargamento das isenções de custas processuais, nos processos interpostos por trabalhadores, incluindo as custas de parte. Há também omissões a respeito das condições de trabalho dos funcionários judiciais, da falta de internet e computadores ou de condições para todos os trabalhadores da justiça que diariamente frequentam todos os tribunais, como advogados, solicitadores, agentes e execução, magistrados, entre outros, embora alguns destes problemas também devam encontrar resposta em sede de Orçamento do Estado. Reconhecendo alguns aspectos positivos na área da digitalização, o facto é que as insuficiências da justiça vão muito para além da também necessária modernização tecnológica.
Outra preocupação presente no PRR tem a ver com a necessidade de redução das pendências, bem como da duração dos processos. A CGTP-IN alerta que a redução das pendências deve ser conseguida através da rápida resolução dos conflitos – o que só é possível com o reforço de pessoal e melhoria das condições de trabalho – e não através de processos de desjudicialização responsáveis por impedir o acesso dos mais carenciados aos tribunais e de envolvê-los em acordos que os prejudicam.
Em suma, as medidas preconizadas neste PRR não visam responder às necessidades reais com que o país se confronta na área da justiça, visam apenas responder à visão redutora que a UE tem sobre os direitos dos trabalhadores e do povo, em geral. A necessidade de modernização da justiça, que não negamos, deve integrar todos os tribunais judiciais, independentemente do ramo de direito, devendo dar-se especial atenção à péssimas condições em que se encontram os tribunais e o processo do trabalho. O país precisa de uma justiça de acesso universal, em que a igualdade de armas não esteja viciada à partida pelas desigualdades económicas, factor que será agravado pelas propostas deste PRR.
O PRR prevê uma verba elevada, em termos comparativos, para a habitação (1633 M€), o que, à partida, revela a intenção de dar relevância a esta área nas políticas públicas. Justifica-se esta relevância atendendo às vulnerabilidades, carências e desigualdades existentes, bem evidenciadas pela epidemia; à falta de respostas públicas, em particular de um parque público de habitação; aos efeitos da liberalização do arrendamento urbano seguido por uma bolha imobiliária nos últimos anos; à sobrecarga das despesas de habitação de muitas famílias. Os Orçamento de Estado, o PRR, o próximo ciclo dos fundos europeus e a aprovação da Lei de Bases da Habitação devem constituir um ponto de viragem nas políticas públicas.
A resposta do PRR suscita interrogações. Em primeiro lugar, tem uma forte marca assistencialista ainda que temperada pela intenção de criar um parque público de habitação a preços acessíveis. A CGTP-IN defende a necessidade de articular o aumento da oferta pública com a alteração da legislação que em 2012 aprofundou a liberalização do arrendamento urbano (“lei dos despejos”), ainda que alguns dos seus aspectos mais gravosos tenham sido parcialmente corrigidos.
Depois, porque uma parte significativa do investimento (41%) é constituído por empréstimos, onde se inclui o parque público de habitação a custos acessíveis (774 M€) e o programa de alojamento estudantil a custos acessíveis (375 M€), tendo o Governo afirmado que poderão não se concretizar no caso de contarem para efeitos de contabilização da dívida pública. A CGTP-IN defende que Portugal não deve ser limitado (ou autolimitar-se) na utilização de recursos, incluindo empréstimos, pelo facto da sua utilização poder fazer acrescer a dívida pública.
Para a CGTP-IN é urgente afirmar um serviço público de abastecimento de água e saneamento, cuja disponibilidade é fundamental à vida e à saúde humanas, bem como a necessidade da sua gestão pública. Aquilo que se exige é uma política fortemente vinculada com o disposto na Constituição da República Portuguesa, com o respeito e a fruição universal dos direitos à água - direito humano à água e ao saneamento; direito à água como ambiente; direito à água como meio de produção. Uma política em que o Estado assuma directamente a responsabilidade inalienável da gestão da água, do domínio público hídrico e dos serviços de águas, que garanta a fruição dos direitos e o estabelecimento de critérios de afectação dos direitos de uso numa perspectiva de desenvolvimento equilibrado, saúde, bem-estar e segurança e nunca de mercantilização. É sob este prisma que consideramos que o Plano de Recuperação e Resiliência, sem desvalorizar algumas das medidas nele contidas, não responde aos problemas e às necessidades. Para isso, é indispensável recuperar o papel da Administração Pública no planeamento e gestão dos recursos hídricos.
A CGTP-IN valoriza o investimento nos transportes públicos através da mobilidade sustentável (1.032 M€ a fundo perdido e 300 M€ através de empréstimos), mas alerta para a necessidade de se ir mais longe na sua promoção e investimento, utilizando outros financiamentos, sejam eles nacionais, no quadro do Orçamento do Estado, ou europeus, no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual. Investimentos que promovam a coesão territorial e o desenvolvimento do país e que passam, designadamente, pela dinamização e modernização da ferrovia em todo o território e não apenas por uma parte dos transportes públicos urbanos.
É de valorizar também a intenção de dar continuidade ao Programa de Apoio à Redução Tarifária, que em nossa opinião deve ser reforçado, o que é importante não apenas por questões financeiras para as populações, mas também pelos impactos positivos que uma maior utilização dos transportes públicos tem no ambiente. No entender da CGTP-IN, os apoios públicos na área da mobilidade e transportes deveriam ser canalizados para a promoção do transporte público e não para o transporte individual, como é caso da mobilidade eléctrica privada.
No que diz respeito à aquisição de material circulante destinado a serviços interurbanos de longo curso, através do recurso a empréstimos (300 M€), relativamente aos quais parece haver dúvidas pelos impactos na dívida pública, a CGTP-IN considera que esse investimento é fundamental e que não deve ficar dependente dessa avaliação em termos da dívida. Trata-se de investimento importante para o país. Considera ainda que o mesmo não se deve limitar às 12 automotoras eléctricas previstas, mesmo que para tal se tenha que recorrer a outras financiamentos e que é fundamental que se dêem passos para que esse fabrico possa ocorrer no quadro da reindustrialização do país, aproveitando o conhecimento interno existente.
No documento reconhece-se que a desindustrialização foi particularmente sentida em Portugal, com o peso da indústria transformadora no PIB a cair quase 5 pontos percentuais entre 1995 e 2019, e enaltece-se a importância da indústria e da inovação como fundamental para o crescimento económico. Contudo, a sua visão continua subordinada às prioridades da UE no quadro do reforço da autonomia estratégica desta, quando o necessário é que a reindustrialização e a dinamização da produção nacional seja concretizada na afirmação de um caminho soberano do nosso país, tendo por objectivo fazer face ao défice da nossa balança comercial face à UE, que no final de 2020 era de perto de 3,5 mil milhões de euros.
O PRR destina 1209 M€ à reindustrialização mas as medidas são limitadas. Em primeiro lugar, as Agendas/alianças mobilizadoras para a reindustrialização, que concentram a maioria do investimento previsto (558 M€), dirigem-se a um conjunto restrito de áreas que se pretendem estratégicas e inovadoras, o que, sendo importante, deixa de fora a recuperação das indústrias já existentes e os saberes associados.
Em segundo lugar, continua a haver um enfoque excessivo nas exportações, descurando a substituição de importações e a resposta às necessidades do país, desde logo combatendo os seus défices (alimentar, energético, científico, tecnológico).
Para a CGTP-IN é fundamental que a reindustrialização do país apoie quer as indústrias tradicionais, quer novas fileiras produtivas que se baseiem no aproveitamento dos recursos endógenos e que o seu desenvolvimento no território favoreça a coesão interna, apoiando-se num modelo produtivo baseado no emprego qualificado, estável, com direitos e salários dignos. Isto num quadro em que o Estado tem de assumir o controlo público sobre as empresas e sectores estratégicos.
Responsabilização, avaliação, transparência e participação
Para a CGTP-IN o modelo de governação a adoptar tem de respeitar um conjunto de princípios fundamentais, nomeadamente os princípios da responsabilização, da transparência, e da participação.
Do ponto de vista da responsabilização dos agentes e avaliação das medidas, é fundamental assegurar que são criados mecanismos e instrumentos que permitam garantir a avaliação e monitorização contínua da execução dos projectos, bem como a prestação de contas atempada por todos os que beneficiarem dos fundos, incluindo auditorias e controlos destinados a detectar incumprimentos, irregularidades e fraudes.
Urge mudar o paradigma de auditoria baseado no papel e no procedimento – que beneficia as grandes auditoras multinacionais contratadas para o efeito –, para um paradigma de verificação efectiva e material dos resultados alcançados.
No que toca especialmente às empresas, consideramos essencial que as beneficiárias, e outras entidades com trabalhadores ao seu serviço, fiquem obrigadas ao cumprimento da legislação laboral e dos instrumentos de regulamentação colectiva aplicáveis, bem como à manutenção de postos de trabalho e proibição de cessação de contratos de trabalho sob qualquer modalidade.
Acresce que deve garantir-se, através de regulamentação muito clara e sem ambiguidades, que os montantes previstos para micro e pequenas empresas, vão de facto beneficiar esse tipo de entidades e não as grandes empresas, que não necessitam de apoios.
Por outro lado, é importante que o acesso aos fundos seja promovido com toda a transparência possível e possa ser continuamente escrutinado. Para assegurar este princípio é essencial a disponibilização, permanentemente, de informação actualizada e acessível a todos sobre o desenvolvimento do Plano quer globalmente, quer no que respeita aos diferentes projectos que o integram, nomeadamente através da disponibilização e informação acessível e compreensível, que abranja todos os aspectos, desde a execução global à forma como estão a ser aplicados os recursos, a evolução dessa aplicação e os resultados que forem sendo obtidos, bem como informação individualizada sobre cada projecto e investimento financiado.
Por fim, a execução do Plano, bem como dos diversos projectos e investimentos, deve ser acompanhada aos diferentes níveis por todos os interessados, incluindo os trabalhadores e as suas organizações representativas, devendo o modelo de governação adoptar uma orgânica e funcionamento adequado ao efeito. A CGTP-IN sublinha que uma das lacunas mais importantes nos quadros plurianuais de financiamento, se prende com o carácter meramente formalista e muito assente numa lógica de cúpula que reveste todos os procedimentos e órgãos de consulta.
O facto é que a consulta e participação nestes domínios se tem revestido de um papel meramente instrumental que visa dar uma aparência de participação quando, na prática, ela não existe.
A este nível, consideramos fundamental que a Comissão Nacional de Acompanhamento prevista no Plano tenha a participação dos sindicatos, sendo inaceitável que as estruturas representativas dos trabalhadores não estejam presentes.
CGTP-IN
01.03.2021